sábado, 1 de julho de 2023

Rever

 Ao te rever, não me pergunte o que eu gostaria de fazer. Se você me perguntar o que eu gostaria de fazer, eu diria que gostaria de te levar à minha cidade, não para conhecer os lugares históricos ou mesmo turísticos que ela possui. Eu te levaria aos meus lugares preferidos e contaria a história de cada um deles do ponto de vista mais pessoal possível. Diria coisas como "ali, antes de ser construído esse museu, era um mirante e meu pai trazia a mim e ao meu irmão para descemos essas ladeiras de bicicleta e de patins", "ali, naquele prédio, foi o meu primeiro emprego de carteira assinada, no qual não durei dois meses", "ali era uma loja de departamentos, onde comprei meu primeiro disco, e foi um dos Beatles", "esta é a estátua da pessoa que dá nome à rua em que eu morava lá onde nos conhecemos... sim, ele é daqui", e iria tentar te apresentar uma cidade histórica te enchendo com memórias afetivas. Por fim, eu te levaria para ver a Baía da Guanabara no ponto que acho mais bonito,  vendo a capital inteira de frente e te contando por que eu precisava voltar e toda a minha vida até aqui, para que você soubesse mais de mim, de quem eu sou e de onde vim, para tentar te fazer gostar de mim mais uma vez.

E eu te diria que vinha observando você e achando muito bonito o que se tornou e que eu gostaria que você soubesse disso.

E, ao te rever, não me pergunte tampouco o que eu pretendo fazer. Se você me perguntar o que eu pretendo fazer, eu direi que pretendo ficar te olhando o quanto eu conseguir, para reter ainda mais essa imagem que nunca esqueci e que conseguiu estar ainda mais bonita do que sempre foi. Eu direi que pretendo lembrar do cheiro dos seus cabelos, do timbre da sua voz e da cor dos seus olhos quando olha para mim. Eu direi que pretendo ficar o tempo todo em silêncio, contrariando tudo o que eu gostaria de dizer e de te contar, e que eu pretendo que esse silêncio disfarce o tremor na minha voz e toda a ansiedade acumulada só por saber que estaria te revendo e que seria mais prudente - para mim e para você - se eu apenas ficasse em silêncio. 

Mas se ao te rever você me perguntar o que eu vou fazer, eu não responderei. Eu apenas seguirei estando perto de você o quanto eu puder, o quanto eu conseguir sem ficar dando muita bandeira. E, quando você me perguntar novamente o que eu vou fazer, eu sorrirei e direi "eu vou para casa". E te darei um abraço, beijarei seu rosto e direi "foi bom te rever, viu?". Direi "fica bem e aproveite bastante", e isso será tão sincero quanto todas as coisas que eu gostaria ou pretendia, pois será dito com o mesmo amor que sempre existiu. E eu estarei feliz simplesmente por ter podido estar contigo. 

E, talvez, chegando em casa, eu escreva sobre isso tudo. Talvez eu até envie esta carta para você. Mas, talvez, eu não envie. Talvez eu sequer escreva. 

Pois, talvez, eu saiba (ou, pelo menos, goste de acreditar) que você já sabe de tudo isso.

E obrigado por me permitir estar contigo. Significa muito.

Esteja bem. 

Um beijo.

E seja tão feliz quanto você puder ser, quanto você conseguir ser, quanto eu gostaria que você fosse. Quanto eu desejo que você seja.




segunda-feira, 11 de julho de 2022

DA LEVEZA (2)



Dizer que me apaixono por ela todo dia seria não um mero exagero, mas uma mentira.
Mais que uma mentira, seria uma farsa.
Pior que uma farsa, seria uma injustiça.

Mentira, pois não condiz com a realidade.

Farsa, pois teria o intuito de enganar.

Injustiça, pois, deliberadamente, desconsideraria toda a história e, de modo ainda mais indevido, toda a participação dela nesse processo.

Toda a construção, paulatina, paciente, contínua, perene, tranquila.
De confirmações, divergências, aprendizados, impasses e desafios.
Do quotidiano das pequenas coisas.
Das pequenas palavras.
Das pequenas descobertas.
Dos pequenos esquecimentos.

De algo que se desenvolve, amadurece e, mesmo de modo díspar, se fortalece.
Mesmo que seja somente aos meus olhos.
Mesmo que nada, efetivamente, se modifique.
Mesmo assim, cresce e permanece.

Dizer que me apaixono por ela todo dia seria uma mentira.

Tal coisa não “acontece” todos os dias, pois ela vem de todos os tantos dias anteriores.
E se torna natural. 
E deixa de “acontecer” para “ser”. 
E é.
Mesmo sendo apenas para mim.

Mas certas coisas, quando se estabelecem e são, não precisam mudar.
Mas é preciso cuidado, respeito, espaço.
E vamos regando e cuidando e podando e colhendo os frutos que surgem e nos alimentando deles conforme as ofertas e as necessidades. 

Dizer que me apaixono por ela todo dia seria não um mero exagero, mas uma mentira.

Eu me apaixono por ela a cada dois ou três meses.

E, entre um desses momentos e o outro, eu me permito estar satisfeito apenas com o fato de eu me apaixonar por ela.
Mesmo sendo apenas para mim.

modelo da foto: Marcella Gonçalves

sábado, 17 de julho de 2021

30 YEARS AFTER MY FIRST APOCALYPSE

A mídia sempre se preocupou com o fim do mundo... Desde os tempos mais antigos, há relatos de previsões sobre tal acontecimento. Durante eras imperou a ideia de alguma grande intervenção divina, afinal a ciência ainda não era algo estabelecido e o homem talvez ainda não se achasse capaz de fazê-lo por si só, até porque ainda eram poucos indivíduos sobre o mundo. Concentrar-me-ei nas épocas e nos medos que presenciei. Quem foi, como eu, criança no finalzinho dos anos 1970 e em boa parte dos anos 1980 deve se lembrar do grande medo da época: a hecatombe nuclear! A guerra fria mantinha em nós o medo de não haver um amanhã porque alguém das grandes potências _EUA e URSS_ poderia apertar a qualquer minuto o botão que desencadearia a guerra final. Dois filmes estadunidenses, ambos produzidos no ano de 1983 retratam muito bem esse medo: “Jogos de Guerra” (War Games, de John Badham) e “O Dia Seguinte” (The Day After, de Nicholas Meyer), sendo que este segundo causou uma comoção tremenda, foi um verdadeiro choque. Vários músicas populares versavam sobre o assunto que era também recorrente no seriado “Além da Imaginação” (The Twilight Zone), em um dos episódios da época, chamado “Um Pouco de Paz e Tranquilidade” (A Little Peace and Quiet) a protagonista para o tempo no momento em que os primeiros mísseis nucleares são lançados (perdão pelo spoiler). Mais aterrorizante que propriamente pacifista. Agradecimentos a Wes Craven. Já no final dos anos 1980 até os anos 1990 termina a guerra fria, cai o muro de Berlim, Gorbachev desmonte a União Soviética e começa a revolução tecnológica. O mundo se via diante de um novo dilema: o avanço tecnológico industrial dava saltos cada vez maiores, pessoas perdem seus empregos para sistemas automatizados, o computador pessoal invade as casas, o conceito de redes mundiais de comunicação digital se estabelece. AS MÁQUINAS DOMINARÃO O MUNDO! Ok, Asimov já pensava nisso em 1950, mas agora a coisa era real! Uma coisa interessante sobre os dois filmes mais emblemáticos dessa época é que eles só fizeram sucesso realmente muito tempo depois de produzidos, passando boa parte de suas “vidas” sendo considerados cult até se tornarem populares com o aparecimento do videocassete e o novo mercado de videolocadoras, que facilitou o acesso de vários filmes ao grande público. São eles “Blade Runner – Caçador de Androides” (Ridley Scott, 1982) e “O Exterminador do Futuro” (The Terminator, de James Cameron, 1984). A passagem do século XX para o XXI trouxe consigo uma nova preocupação mundial: o desequilíbrio ecológico. Mais uma vez algo que já era falado desde os anos 60 só que, assim como a paranoia tecnológica, o ser humano percebeu que a coisa era pra valer e não apenas chilique de um bando de hippies cabeludos. Filmes-símbolo: “O Dia Depois de Amanhã” (The Day After Tomorrow, de Roland Emmerich, 2004) e o documentário de Al Gore, “Uma Verdade Inconveniente” (An Inconvenient Truth, 2006). Vale dizer que Al Gore ganhou o Nobel da Paz em 2007 devido a seus esforços pela divulgação da causa ecológica. Outros autores exploravam outras formas “naturais” de destruição do mundo... alguns pensavam em um asteroide, como no tempo dos dinossauros, outro em vulcões ou maremotos... sempre “a natureza se vingando” (diria Fernando Pessoa sobre isso “Só a Natureza é divina, e ela não é divina.../ Se falo dela como de um ente/ É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens/ Que dá personalidade às cousas, E impõe nome às cousas.”), alguns inventavam doenças e epidemias, mas estas eram sempre controladas, a Natureza não. E cá estamos nós já na segunda década do século XXI, os anos 10 e eis que ressurge com força extrema algo que era uma temática para lá de alternativa e restrita aos filmes “B” de terror dos anos 60 aos 80: o apocalipse zumbi! Mortos-vivos que vagam em bandos com o único intuito de alimentarem-se de cérebros. Agora eu vou dizer uma coisa muito séria para vocês, caríssimos amigos: ISTO TAMBÉM JÁ ACONTECEU! O mundo hoje alcançou 7.000.000.000 (sete bilhões) de habitantes. Somos, definitivamente, a espécie animal com crescimento mais descontrolado da história do planeta. O mundo inteiro, inclusive os chamados países desenvolvidos, sofre com desemprego, problemas de educação, alimentação e saúde para todos. A comunicação mundial se dá de modo imediato e fragmentado, todos têm acesso a tudo e ninguém sabe de nada. Boa parte das pessoas apenas reproduz o que é dito por outros. Mesmo as academias vêm padecendo de identificar o que é produção e o que é reprodução. Cada vez mais pessoas se aliam em grupos sejam políticos, religiosos, de torcedores de algum time, de fãs de algum artista, de gente que segue alguma dieta alimentar... A verdade que meus olhos veem através das lentes de meus óculos é triste. O mundo está dominado por zumbis. Por seres sem capacidade de discernimento que vivem de comer os cérebros alheios a transformar a todos em seus iguais... O que fazer em um mundo assim? Eu resolvi virar professor. Sei que não vou salvar o mundo do apocalipse já instalado. Minha missão não é tão bonita quanto a de meus antecessores. Eu estou aqui para tentar ajudar a manter o cérebro de outras pessoas ainda em suas funções, por mais que elas sejam mordidas pelos zumbis da televisão sensacionalista, da internet procrastinadora, das músicas que transmitem ideia nenhuma. Eu estou aqui para treinar sobreviventes.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

O SUFICIENTE


Gosto dela.

Meu ID grita que eu gosto dela desmesuradamente. O superego sabe: gosto dela e isso é mais que o suficiente.

O eu lírico fermenta e derrama e esparrama esse gostar em uma série crescente de superlativos  hiperbólicos  e sinônimos e polissíndetos. O eu revisor enxuga todos os excessos para o que é suficiente para transmitir a ideia com exatidão.

O que importa: gosto dela.

Talvez até dissesse que gosto dela a ponto de gostar até das discordâncias, mas a razão me aponta que isso não é gostar, isso é respeitar (e isso é o básico).

Talvez até dissesse que gosto dela a ponto de expor a ela minhas ideias, opiniões e dúvidas, mas isso tampouco é gostar, isso é confiar.

Talvez até dissesse muitas coisas que se confundem com muitas outras, mas...

...talvez eu diga apenas que esse gostar reside no somatório de muitas coisas que se acumulam positivamente. Mesmo as eventuais discordâncias. Mesmo os eventuais silêncios.

Gosto dela o suficiente para dizer-lhe isto sem medo de ser incompreendido e sem me preocupar em mudar muita coisa, apenas na melhor forma de expressar da forma que é.

Gosto dela.

E isso é o que importa.

E isso é mais que o suficiente.

(11-07-2019)

(foto: autobordado de Marcella Gonçalves, @vie.cella [instagram])

domingo, 17 de dezembro de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE PABLLO VITTAR (de novo)

Eu jurava que era algo já explicado, mas, antes, vamos colocar uns critérios para não virar uma discussão sobre o sexo dos anjos*.

[*trocadilhos inclusos, voluntários ou não] 

1. O que um homem hétero sabe sobre as questões LGBT, se ele não pertence a esse grupo? R.: Ele passa a saber sobre isso do mesmo modo que um professor de Geografia sabe sobre as monções indianas, mesmo sem nunca ter estado lá, aliás, tudo, menos dizer que o cheiro da chuva é agradável, pois isto seria uma subjetividade e, se disser isso, salientar ser uma impressão geral e consensual de relatos de quem vive a situação: Estudando MUITO sobre o assunto e se atendo ao que é objetivo, respeitando as subjetividades de quem vive tais impressões.

2. Caso haja insistência no falacioso argumento do "lugar de fala", eu vou ter que apelar, logo de início, para o meu como, no mínimo, alguém que vem trabalhando no setor artístico, mais especificamente com música nos últimos vinte e cinco anos e com uma visão não apenas artística do assunto, mas sócio-política.

3. Como eu já falara sobre o tema, deixarei o texto referente linkado no primeiro comentário. Tratarei justamente do que evitei no anterior.

Pabllo Vittar virou o foco dos holofotes das redes de distribuição de ódio... OPS! Errei! leia-se "das redes sociais" novamente ao ter a música que interpreta escolhida como "música do ano" no programa do Fausto Silva.

Mas quem diabos dá importância a um prêmio distribuído pelo Faustão?! Bem, essa resposta existe, mas vamos guardá-la para uma próxima oportunidade e focar no que importa: Os renovados ataques a Pabllo Vittar, com suas requentadas justificativas e suas igualmente pífias defesas, e do que tratarei hoje são os ARGUMENTOS.

Como já citado, os aspectos de critérios estritamente musicais já foram explicados, então, primeiramente™, foquemos no argumento mais visto, que não se debruça nisso.

"Fred Mercury, Cazuza, Ney Matogrosso também eram/são gays e ninguém nunca ligou pra isso e são ícones até hoje".

Sim, são ícones e musicalmente muito respeitados, mas adivinhem qual é o ponto sempre que alguém resolve criticá-los? Exatamente, a sua sexualidade.

Porém, há um dado importante aí: nenhum deles, tirando uma certa fase da carreira de Ney Matogrosso, era "queer" e o próprio Ney descarta essa definição. Eram homens gays, e isso faz com que essa comparação caia nos chamados "falso paralelismo" e "falsa dicotomia". São duas falácias argumentativas (viram, gente? existem falácias além do espantalho e do ad hominem!) que fazem com que dois elementos que não possuem os mesmos critérios sejam avaliados sob um mesmo prisma.

Assim, para sermos realmente justos, temos que (1) estabelecer critérios e (2) avaliar cada critério estabelecido separadamente.

O ponto principal, no que se refere à homo/transfobia, é que Pabllo Vittar só teria comparação com outras figuras midiáticas que também adentrassem no espectro da transexualidade. É aqui que eu invoco a carta ROBERTA CLOSE BRONZEADA. 

As novas gerações, especialmente os nascidos nos anos 1990 e após, possuem, no máximo, uma relação de "ouvi falar dela" com a, até o aparecimento de Vittar, mais famosa transexual do Brasil. Muitos jovens sequem ouviram seu nome.

Pois bem, é consenso que todo "homem cis hétero" ficou, por assim dizer, confuso quando essa figura chegou aos holofotes. "Era mesmo um 'homem'? Não é possível!" e indagações e interjeições de surpresa sempre fizeram parte da reação popular diante dela. Não esqueçamos que estamos falando dos anos 1980 e as nomenclaturas eram outras, muitos dos termos hoje usados sequer existiam. Um expoente disso foi a chamada de capa da revista Playboy, quando ela posou para suas páginas, sendo a primeira vez no mundo que uma mulher trans foi fotografada para a revista: "Incrível. As fotos revelam porque Roberta Close confunde tanta gente". E, mesmo assim, Roberta Close, que também sempre teve uma atuação muito forte, nunca se esquivando de perguntas sobre o que era essa "novidade" (o transexualismo), como isso funcionava em uma pessoa, como eram questões pessoais e familiares, sofreu muito preconceito a ponto de decidir simplesmente sair do país porque aqui não dava mais e, há muitos anos, não responde mais a perguntas que já não mais eram curiosidades, mas tornaram-se extremamente invasivas.

Só que, ainda assim, Roberta conseguiu construir uma bastante sólida carreira de modelo (para os padrões da época... ela nunca desfilou para a Victoria Secret's, como nenhuma outra brasileira então). 

O meu ponto é: Roberta Close era uma modelo de sucesso, uma quase unanimidade como ícone de beleza feminina, mas ela também se arriscou como atriz e cantora. Ela foi péssima nessas duas coisas. Seu talento para fotografar e desfilar era incontestável, mas uma verdadeira tragédia em atuação ou canto. Ela sabe disso. Ela reconheceu isso. Ela não investiu mais nisso. Ela sempre será lembrada como a incrível modelo que transpassou as fronteiras da identidade sexual, mas nunca será lembrada como péssima atriz ou cantora. Isto simplesmente é uma nota de pé de página em sua biografia.

Já o talento de Vittar em sua área de atuação é tremendamente discutível.

Falemos então do metier de Pabllo: a música, e eu só posso compará-la a uma outra figura  que ainda é, para mim, insuperável no setor "queer" brasileiro. Vamos falar um pouco de Rogéria.

A maquiadora que tinha um talento que ia muito além dos pincéis, rímeis, blushs e batons. Uma voz potente, um repertório impecável, uma presença marcante. Rogéria, a travesti que desancava e desmascarava a "macheza" de Jesses Valadões e companhia em suas entrevistas. Um símbolo de resistência que pegou o pão que o tinhoso amassou, transformou em iguaria gourmet e comeu. Passou por muitas e péssimas o Astolfo Pinto, que era, na verdade, ele sim, o alter ego de Rogéria, que, antes de Madonna, nunca precisou de sobrenome. Rogéria se bastava. 

Qualquer músico de barzinho reconhece: Rogéria era uma artista TREMENDA. Já Pabllo Vittar...

Porém, mesmo assim, Roberta Close e Rogéria sempre sofreram uma carga enorme de preconceito por conta de serem o que eram sexualmente. Ainda que as críticas em relação ao seus trabalhos fossem sempre e merecidamente muito positivas, em algum momento acontecia a adversativa com o preconceito disfarçado de jocosidade: "mas é um viadão".

E Pabllo? Pabllo é a cara da nova geração de um grupo de excluídos que se perdeu no tocante a como se posicionar. É a face visível de uma geração marcada por polarizações extremas, radicalismos, ataques e defesas cegos. Quem não é completamente a favor do que eu digo se torna, automaticamente, meu inimigo mortal. Quem se enquadra minimamente no que eu penso não pode ser criticado sob nenhum aspecto. Isto se dá em qualquer lado. 

O que acontece se alguém demonstrar que a figura midiática de Pabllo Vittar é tão somente uma capitalização de um determinado nicho de um mercado que já sofre imposições desde sempre? A figura e as canções de Pabllo, tal como Anitta, Safadão, Kevinho, Valeska, Psirico e tantos outros vendidos como "populares", não são nada além do que o mercado sempre fez, desde Gretchen, Ritta Cadillac, É o Tchan e outros tantos sempre fizeram: vender uma imagem hipersexualizada e objetificada da mulher. A afirmação de uma sexualidade com liberdade é importante? Sim, muito. Mas por que será que, quando a mídia celebra figuras femininas, é exclusivamente para vender corpo e sexo? Por que será que mesmo a figura de Pabllo Vittar, que talvez tenha coisas muito importantes a dizer sobre a sua condição, só aparece midiaticamente como um corpo sensual que vai rebolar e, aparentemente, nada mais que isso? Porque os donos do mercado são mais espertos que eu e vocês. Porque eles sabem até mesmo fazer com que vocês acreditem que o que eles produzem, selecionam e distribuem é "popular". Porque eles são víboras que sabem camuflar sua pele.

"Ah, mas tem uma música de Pabblo Vittar que fala da luta LGBT!" Sim. Uma. Que praticamente ninguém fora do núcleo LGBT conhece. Que muita gente do próprio núcleo desconhece. E não foi esta música a vencedora de "música do ano" interpretada pela voz de Pabllo Vittar. Por quê?

Então sim, muita gente, mas muita gente mesmo vai usar a sexualidade de Pabllo Vittar como um ingrediente a mais para criticar o seu trabalho musical, ainda que sejam duas coisas completamente desconexas. É assim que preconceituosos agem, aproveitam qualquer brecha minimamente válida para derramar seu ódio contra os aspectos que reforçam o preconceito. Mas será mesmo que a defesa da pessoa Pabllo Vittar  deve "passar o pano" sobre todos os poréns que a sua carreira artística possui? 

Muito particularmente, eu acho que Pabllo Vitar poderia ter uma atuação muito positiva e com muita visibilidade em várias áreas. É uma figura carismática, alegre, expansiva, e eu duvido muito que não se saísse muito melhor que a insossa Fernanda Lima se comandasse um programa de televisão. Mas a mídia permitiria que Pabllo tomasse o lugar de uma Fernanda bonita, loira, magra, rica, casada, mãe, e lhe daria a possibilidade de ser maior que ela? Talvez uma Xuxa só para adultos? Hoje, isso não aconteceria. 

Por falar em Xuxa, ela é uma péssima cantora, mas ninguém liga, sabem por quê? Porque ela não é cantora.

Será que permitiriam a mesma suspensão de crítica caso Pabllo Vittar apresentasse um programa e, vez ou outra, cantasse (mal, como de fato canta)?

Aí, só há como conjecturar...

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Ok, vamos lá.

Buscarei seguir a estrutura da sua postagem até o quanto possível, o que faz com que eu tenha que iniciar com uma breve apresentação pessoal acerca do que toca o tema.

Estudei em escola pública a minha vida escolar e acadêmica inteira, excetuando o Fundamental I, à minha época chamado de "primário", que foi feito em uma escolinha de bairro e um ano em um colégio particular e mais um em um colégio comunitário, mas o primeiro e segundo graus (hoje, Fundamental II e Médio) foram em escolas estaduais do Rio de Janeiro e universidades federal e estadual, no RJ e no CE, respectivamente.

Sou professor por escolha, formação e atuação há cerca de 15 anos, trabalhando sobretudo na rede particular e, ocasionalmente, em projetos geridos pelo estado. Não apenas acompanhava, como era participante ativo de debates acerca da estrutura do ensino e da formação do profissional professor (sem mais tanto afinco no último ano por questões pessoais que fogem ao tema), e era inclusive palestrante convidado em escolas, sobretudo sobre Direitos Humanos e afins.

Sou de uma família de professores. Mãe professora, irmãos professores, ex-mulher professora, tias e primas professoras. A docência parece ser um gene dominante nos Borges.

Ter tido uma formação inteiramente feita em instituições pública me faz, além das minhas prerrogativas pessoais, a ter uma grande consciência de que sou um fruto do trabalho e do investimento da minha comunidade. Meus estudos foram quase integralmente pagos pelos impostos de cidadãos como eu e não estar atento a isso na minha carreira não é apenas equivocado como tremendamente injusto.

Dito isto, é preciso entender que a luta por melhorias no sistema de ensino nacional é algo que já acontece há mais de 25 anos.

Meu primeiro contato com a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) foi em 1992 (ou 1993, perdoem a falha de memória), quando fiz um ano de curso pedagógico, ainda no Segundo Grau. Eram poucos anos após a promulgação da Constituição, em 1988, e esta AINDA ERA UM PROJETO e mudava radicalmente o sistema anterior. É preciso salientar que, quando iniciei os estudos escolares, criança, ainda era o regime militar. Não havia PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), apenas um projeto disto e já era considerado um extremo avanço.

Ao ingressar na universidade, um "sistema único" ainda era mera discussão, o velho vestibular ainda era considerado como quase imutável. Mudou. Hoje há o ENEM, que ainda não é o melhor dos sistemas, mas foi outra conquista gigantesca e volta a estar sob ameaça, querendo-se retornar a um sistema que se pauta pela eliminação, não pela inclusão.

Entre a LDB de 1996, fruto da constituição de 1988 e sua última modificação, em 2006, muita coisa mudou, a esmagadora maioria delas para melhor, se for considerada a letra da lei. Muito ainda deve ser mudado, sem dúvida, dado acima de tudo o dinamismo das mudanças sociais.

Eu sou fruto de um currículo antigo. Na minha grade não havia Artes ou Sociologia, o que é lamentável.  Passei por dois colégios profissionalizantes e boa parte de meus colegas advindos dela possuem apenas os empregos de níveis técnicos, pois essa estrutura de ensino trava e bloqueia inclusive o acesso a universidades que teoricamente seguiriam as capacitações técnicas. Uma piada comum sobre a minha velha escola é que "o Henrique Lage forma funcionários da CERJ (hoje Ampla), da TELERJ (hoje Oi e afins) e músicos de barzinho". Eu saí de lá músico de barzinho. E lá não tinha curso técnico de música.

Durante a minha formação acadêmica, percebi o quanto havia de diferente  entre a lei e sua aplicação, tanto em relação ao sistema (governo e interesses das instituições privadas) e até mesmo pessoais, o que inclui, acima de qualquer coisa, a questão da formação do professor.

Dizer que "arte é fazer desenhos", "educação física é jogar bola" e "filosofia é ficar batendo papo", "sociologia nunca me serviu para arrumar um emprego" só demonstram como não é possível modificar um sistema sem que a filosofia social seja modificada primeiro e, para que esta mudança se dê, só existe um caminho: ampliar a educação através de profissionais capacitados. Entretanto, o que se vê é, apesar do extremamente alardeado número de universidades e vagas ter aumentado "nunca antes na história deste país" durante os governos Lula e Dilma (principalmente Lula), a proporção de formação de profissionais docentes sofreu uma grande queda. Esquece-se de dizer que boa parte dessas novas faculdades está formando "técnicos especialistas".

Haver uma profusão de maus profissionais, que não seguem as exigências curriculares, não é mais do que o fruto direto de um sistema que ainda tem por meta manter o pobre em condição subalterna e privilegiar quem já tem privilégios, ainda que se maqueiem algumas espinhas muito aparentes da face do sistema.

Este é um dos pontos mais tenebrosos das novas medidas: a efetiva invalidação das licenciaturas (ainda que disfarçada eufemisticamente de "admissão por saber notório").

Se já tem sido complicado ter um ensino de qualidade com quem tem obrigatoriamente que estudar Psicologia Evolutiva (ou seja, como lidar com a mente de crianças e adolescentes em transição), Didática (que vai desde como segurar um giz até como avaliar um livro), Estrutura e Funcionamento do Ensino Fundamental e Médio (que explica o passo a passo do seriamento de conteúdos e, efetivamente, as leis que regem o sistema educacional), imaginem ter ministrando aulas quem nunca passou nem perto disso. Imaginem ter aquele pastor amigo do diretor dando aulas de Filosofia (visto que estas serão "flexibilizadas", aliás, eufemismo máximo dessas propostas).

Não há como considerar de modo algum um pacote arbitrário e verticalizado. Certamente as vozes da sociedade e das comunidades devem ser ouvidas, o que inclui alunos, pais e até o Alexandre Frota, mas as considerações dos especialistas (e aí eu me incluo) foi completamente abafada em nome de interesses que nada têm a ver com melhorias de condições da população, menos ainda do crescimento educacional do país.


Para citar exemplos, verifiquem se em qualquer país minimamente desenvolvido existe a mera menção da retirada (ops! "flexibilização") de aulas obrigatórias de filosofia até o fim do segundo segmento (ou seja, o passo anterior à universidade). Verifiquem se há alguma "opcionalidade" em relação à educação física. verifiquem se os cursos técnicos têm, nesses países, a função de substituir algum grau do ensino básico.


Mesmo as grades curriculares da educação acadêmica no brasil são dignas de piada, aí sim, por sua falta de uma verdadeira flexibilidade. Estudantes de Jornalismo que não passam um semestre sequer nas cadeiras de Letras para aprender Português e Semântica. Estudantes de Física que não estudam Filosofia. Estudantes de Letras  que não estudam Lógica. Estudantes de Direito que não estudam Análise do Discurso. Estudantes de Música que não estudam Física (como Acústica).

Não existe nenhum ponto positivo nessas medidas anunciadas e estranhamente retificadas.

Eu poderia falar não apenas horas, mas semanas inteiras abordando cada ponto deste assunto e não será uma conversa de bar, será um esclarecimento em que eu precisarei de outros especialistas e de um retroprojetor e uma ponteira laser. O que não há é como ficar de achismos que se pautem no lugar-comum. Não é uma questão de "problematização". Medidas já foram propostas por gente como Chico Alencar (que é meu representante desde que eu possuo um título, principalmente por conta disso) e vêm sendo sistematicamente obliteradas pelos interesses obscuros de quem realmente domina o país.

Uma mudança que já vem sendo mais do que adiada não se resolve na base de polemização e canetadas, mas, se há algum ponto positivo nisso tudo, é que o assunto foi trazido à baila. Porém, já sabemos o quanto a informação neste país é manipulável, principalmente pelas falhas nas aulas de Sociologia, Filosofia, Linguagem e História.

Se o professor é o culpado, quem forma o professor é ainda mais.


A luta não é contra indivíduos. É contra o sistema. E o sistema, mais uma vez, mostra suas garras e dentes e nós caminhamos encantados em direção a eles pelo brilho que eles emanam.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Pitangus lictor

Quando a pedra se apaixona pelo pássaro, ela deve sempre lembrar que só o terá por alguns instantes, por muita sorte, se o pássaro resolver pousar sobre ela.

Se ela conseguir um meio de voar até ele, o matará.

À pedra, o quase imutável solo; ao pássaro, o ar, os galhos das árvores, talvez um ninho, mas sempre a brevidade.

Quando o pássaro se apaixona pela pedra, deve decidir se deixará nela alguma marca. E deve lembrar que, feita a marca, ela permanecerá.

Se ele um dia voltar a pousar sobre ela, ela se recordará. Mas não é dos pássaros lembrar.

Quando a pedra e o pássaro se apaixonam, eles continuam sendo uma pedra e um pássaro.

Não deveriam ser permitidos os sentimentos às pedras nem aos pássaros.